Envelhecer: com mel ou fel? - Affonso Romano de Sant'Anna

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

 

"Conheço algumas pessoas que estão envelhecendo mal. Desconfortavelmente. Com uma infelicidade crua na alma. Estão ficando velhas, mas não estão ficando sábias. Um rancor cobre-lhes a pele, a escrita e o gesto. São críticos azedos do mundo. Em vez de críticos, aliás, estão ficando críticos sem nenhuma doçura nas palavras.

Estão amargos. Com fel nos olhos.

E alguns desses, no entanto, teriam tudo para ser o contrário: aparentemente tiveram sucesso em suas atividades. Maior até do que mereciam. Portanto, a gente pensa: o que querem? Por que essa bílis ao telefone e nos bares? Por que esse resmungo pelos cantos e esse sarcasmo público que se pensa humor?

Isto está errado. Errado, não porque esteja simplesmente errado mas porque tais pessoas vivem numa infelicidade absurda. E, demais, deveria-se envelhecer maciamente.

Nunca como alguém caindo num abismo e se agarrando nos galhos e pedras, olhando em pânico para o buraco enquanto despenca. Jamais, também, como quem está se afogando, se asfixiando ou morrendo numa câmara de gás.

Envelhecer deveria ser como plainar. como quem não sofre mais (tanto) com os inevitáveis atritos. Assim como a nave que sai do desgaste da atmosfera e vai entrando noutro astral, e vai silente, e vai gastando nenhum-quase combustível, flutuando como uma caravela no mar ou uma cápsula nos cosmos.

Os elefantes, por exemplo, envelhecem bem. E olha que é uma tarefa enorme. Não se queixam do peso dos anos, nem da ruga do tempo, e, quando percebem a hora da morte, caminham pausadamente para um certo e mesmo lugar - o cemitério dos elefantes, e aí morrem, completamente, com a grandeza existencial que só aos sábios é permitida.

Os vinhos envelhecem melhor ainda. Ficam ali nos limites de sua garrafa, na espessura de seu sabor, na adega do prazer. E vão envelhecendo e ganhando vida, envelhecendo e sendo amados, e, porque velhos, desejados. E dão prazer.

O problema da velhice também se dá com certos instrumentos. Não me refiro aos que enferrujam pelos cantos, mas a um envelhecimento atuante como o da faca. Nela o corte diário dos dias a vai consumindo. E no entanto, ela continua afiadíssima, encaixando-se nas mãos da cozinheira como nenhuma faca nova.

Vai ver a natureza deveria ter feito os homens envelhecerem de modo diferente. Como as facas, digamos, por desgaste, sim, mas nunca desgastante. Seria a suave solução: a gente devia ir se gastando, se gastando até desaparecer e sem dor, como que caminhando contra o vento, de repente, evaporasse. E aí iam perguntar: cadê fulano? E alguém diria: gastou-se, foi vivendo, vivendo e acabou. Acabou, é claro, sem nenhum gemido ou resmungo.

Isto seria muito diferente de ir envelhecendo por um processo de humilhações sucessivas, como essa coisa de ir deixando rins, pulmões, dentes e intestinos pelas mesas de cirurgia, numa mutiladora dispersão.

Acho que o que atrapalha alguns maus envelhecedores é a dismensurada projeção que fizeram de si mesmos. se dimensionaram equivocadamente.

Deveria ser proibido por algum mecanismo biológico, colocarmos metas acima das nossas forças. seria a única solução para acabar de vez com a fábula da raposa e as uvas. Assim a raposa não envelheceria resmungando por não ter devorado o que não lhe pertencia.

Deveria, portanto, haver um botão que desligasse nossos impulsos tada vez que quiséssemos saltar obstáculos para os quais não temos músculos. Assim sofreríamos menos e não amagaríamos não ter tido certas mulheres, conquistado certos reinos, escrito certas obras-primas.

A literatura tem lá seus personagens-símbolos a esse respeito: o Fausto e o Dorian Gray. Apavorados com a velhice e a morte, venderam a alma ao diabo e pediram a juventude de volta. Não deu certo! O diabo não joga para perder. Dizem que a única vez que foi ralmente derrotado foi naquela disputa com o próprio Deus a respeito de Jó. Mesmo assim, deu um trabalho danado.

Especialista vão dizer que envelhece mal o indivíduo que não realizou suas pulsações eróticas essenciais; aquele que deixou coagulada ou oculta uma grande parte dos seus desejos. Isto é verdade. Parcial, porém. Pois não se sabe porque estranhos caminhos de sublimação, há pessoas que, embora roxas de levar tanta pancada na vida, têm, contudo, um arco-íris na alma.

Olavo Bilac dizia que a gente deveria aprender a envelhecer com as velhas árvores.

Walt Whitman tem um poema onde vai dizendo: «Penso que podia ir viver com os animais que são tão plácidos e bastam-se a si mesmos».

Ainda agora tirei os olhos do papel e olhei a natureza em torno. Nunca vi o Sol se queixar no entardecer. Nem a lua chorar quando amanhece."

1 comentários:

Donagata disse...

Sabes, não me custa envelhecer, acho eu. Todas as idades têm tido para mim grandes encantos. Também não acho que tenha azedado com o passar do tempo. Apenas receio o degradar inexorável do corpo que, por vezes, nos rouba a dignidade a que, julgo, deviamos ter direito até ao fim.